Chegamos no apartamento carregando várias malas, mochilas e bolsas. Todas elas cheias de presentes que a pequena tinha ganho enquanto esteve internada. Incontáveis bonecas, bichos de pelúcia, cadernos, quebra-cabeças, canetas, lápis-de-cor, blocos de anotação, jogo da memória, massinhas de modelar... Muitas pessoas, conhecidas e desconhecidas, nos enviavam mensagens de carinho, apoio e força. E Ana Luiza estava adorando tudo isso.
Enquanto a preocupação da pequena era o McLanche Feliz que Marcos comprou assim que saímos do hospital e que ela estava louca para devorar (e devorou!), a minha eram as recomendações e precauções que os médicos haviam nos dado.
Eu ainda estava meio assustada. Durante os últimos 3 anos, Ana Luiza não tinha tido sequer um resfriado. Eu não sabia mais o que era dar remédios no horário certo, monitorar sinais vitais o tempo todo, triplicar a higienização no preparo de alimentos e nos cuidados pessoais. Os médicos disseram que qualquer alteração, e mesmo que ela tivesse apenas 37,5ºC de temperatura, deveríamos voltar correndo para o hospital.
Os médicos tinham dado tantas informações sobre os cuidados que eu não sabia por onde começar. Mas o Vovô Calmon já havia limpado toda a suíte do apartamento e vovó Eliane também estava preocupada em deixar tudo no lugar a espera da pequena. Todo mundo estava apreensivo, todos querendo ajudar e graças a Deus podíamos contar com o amor e carinho dos nossos pais.
Ana Luiza estava feliz por ter saído do Hospital. Os médicos já tinham nos informado que as reações da quimioterapia se manifestariam imediatamente, pois o protocolo de tratamento que ela estava fazendo, utilizava várias drogas e em altas dosagens. A queda do cabelo ocorreria logo, assim como as náuseas, enjoos, falta de apetite e o risco de infecções pela queda da imunidade.
Aproveitando que a queda na imunidade demoraria alguns dias, fomos cortar o cabelo e aproveitar para passear de Metrô até o shopping onde ficava o salão de beleza. Ao chegar ao salão o primeiro drama começou. Inicialmente ela detestou a ideia de ficar “com cabelo de menino”. Mas o cabeleireiro fez um corte bem moderno e ela adorou. Ela estava adorando o novo “look”. Ela conseguia se alimentar normalmente, não teve nenhuma alteração. Ainda estava curtindo os presentes todos e as visitas. Os efeitos colaterais da quimioterapia, ela pouco sentiu. A única vez que ela apresentou um episódio de vômito, foi no segundo dia em casa. A médica havia receitado 3 medicamentos para enjoo (Plasil, Dramin e Vonau) caso ela tivesse vômitos. Se ela estivesse bem, eles poderiam ser suspensos. Como Ana Luiza estava bem, resolvemos suspender os 3 no segundo dia e obviamente ela passou mal. Depois, notamos que para ela ficar bem, sem ficar nauseada e reclamando de odores, era necessário dar continuamente o Dramin e o Vonau. Assim ela se alimentava melhor e o que comia ficava no estômago.
Ela ainda tinha mais duas aplicações de quimioterapia para fazer, antes de internar novamente para mais uma aplicação “grande”. Após 7 dias da primeira internação, lá fomos nós para o setor de quimioterapia do hospital. Ela estava tranquila. Ficou apenas um pouco apreensiva pois o acesso seria feito no cateter implantado, mas foi tudo ótimo. Ela não sentiu nada.
Ela continuou indo ao hospital para as consultas com a psicóloga e só reclamou do horário: “Credo mãe, porque essa Leila tem que marcar essa conversinha tão cedo!?!”
A psicóloga, desde a primeira consulta com Ana Luiza, quando ela ainda estava internada, disse que ela era muito inteligente. Que ela tinha um vocabulário muito rico e entendia tudo o que estava acontecendo. Ela tinha um QI elevado para a idade e era capaz de compreender tudo sobre a doença e a situação em que ela se encontrava. Pediu que a gente explicasse tudo a medida que ela perguntasse e sempre fizéssemos isso de forma muito objetiva e tranquila.
Na primeira consulta, deixou claro para nós dois, Marcos e eu, que Ana Luiza deveria ser tratada normalmente, que Ana Luiza deveria ter uma vida normal. Enquanto ela falava eu pensava: “Normal?! Vida normal? Como?!?!”
Ela disse que precisávamos manter a disciplina, as regras, os horários, a rotina. Ana Luiza precisava “sentir” que aquilo era um tratamento. Pediu que não a “mimássemos” demais, sob pena de ter uma filha que no futuro, não teria interesse em ficar boa, pois ficar doente era “legal”. Pediu que a gente incentivasse uma vida normal. Que era importante ela caminhar sozinha, fazer as coisas sozinha. Nada de carregar no colo a todo momento, nada de tratá-la como um bebê e sim como a criança inteligente de 7 anos que ela era.
Marcos levantou a plaquinha do “eu já sabia”. Eu vesti a carapuça. Tudo que eu queria era ficar segurando ela no colo, como se de alguma forma o abraço pudesse tirar aquela doença horrorosa de dentro dela. Quando a psicóloga falava em vida normal, só conseguia pensar na nossa vida em Manaus: aquilo sim era normal. Acordar cedo, deixá-la na escola, passear, ir na churrascaria predileta dela, tomar sorvete, andar de bicicleta, jogar Nintendo Wii, fazer reuniões com os amigos em casa, fazer guerra de balão d'água no condomínio, passear com o Luck, fazer mil recadinhos e espalhar pela casa, ir buscá-la na casa da tia Luciana toda suada de tanto correr com a Darah, brigar pra ela ir tomar banho, brigar pra ela sair do banho, banho de mangueira, colocar ela dentro do carrinho de supermercado, assistir Discovery Kids, esconder as lembrancinhas dos aniversários de criança para o papai não comer todos os doces... aquilo sim era normal. Nada do que estávamos vivendo naquele momento era normal.
Eu precisa entender que nossa vida havia mudado para sempre. Mas a dor ainda era grande. Eu ainda sentia (na verdade, ainda sinto), muita dificuldade em acreditar que tudo aquilo estava acontecendo. Mas eu precisava encarar a situação.
Na primeira consulta de acompanhamento, Ana Luiza precisaria submeter-se a um exame de sangue antes de ser avaliada pelos médicos. Ela estava apavorada com as agulhas. Os bracinhos ainda estava cheios de hematomas, mas ela cedeu e, contando até três, respirou fundo e deixou a enfermeira picar o braço.
O resultado mostrou que apesar dela estar radiante, feliz e tranquila, seu organismo estava praticamente sem qualquer defesa. Leucócitos e demais componentes da série branca do sangue estavam praticamente zerados. O valor mínimo de leucócitos é de 1500, Ana Luiza estava com 112. Aquilo deu um desespero. Imaginar o corpo da minha filha sem qualquer defesa, era assustador. A médica informou que ela só poderia internar para fazer o próximo ciclo de quimioterapia, se esse valor subisse, no mínimo, para 700. Além disso, ela não poderia ter nenhuma febre ou infecção. O próximo exame seria antes de internação. Eu não iria morrer antecipadamente. Se tem algo que realmente temos aprendido, é viver cada dia de uma vez.
Fizemos nosso primeiro passeio. Em um dia frio, mas não tanto quanto os anteriores, fomos conhecer o Parque Ibirapuera. A médica disse que poderíamos passear, desde que fossem locais abertos. Nada de shopping, cinema e afins. Ana Luiza ficou radiante logo que chegou! Dezenas de crianças, cachorros de diversas raças, pessoas com visuais de “tribos”, tudo muito diferente. E, como ela pôde constatar também, as diferenças também no nosso estilo de vida. Ela estava louca para ir aos inúmeros brinquedos do parque, mas a presença de outras crianças e mesmo a falta de uma higienização especial a impediria. Ela ficou chateada, claro: “Como o passeio pode ser legal se não posso brincar”? Dizia muito chateada. Marcos prometeu a ela que no próximo passeio, eles andariam em uma bicicleta diferente, uma bicicleta para 2 pessoas. Ela imediatamente abriu um sorriso: “Então eu vou atrás e não vou pedalar, é tu que vai fazer força!”.
Mas uma mudança boa também era notada. Ela praticamente já não virava o rosto para evitar a visão dupla e também já atendia o telefone usando o ouvido esquerdo. Para nós, aquilo significava a esperança de que o tumor já não estava pressionando tanto as estruturas dentro da cabeça dela, ou seja, ele poderia estar diminuindo. Esperança e fé.
Na segunda aplicação de quimioterapia “menor”, ao levantar da maca para irmos pra casa, tufos de cabelo ficaram no travesseiro. Me deu um frio na barriga. Agora Ana Luiza perceberia que a vida realmente estava diferente.
Sentada no sofá, assistindo televisão com a tia Camila, ela passou a mão no cabelo, saiu um tufo enorme na mãozinha e ela disse: “Nossa! Meu cabelo tá caindo muito, né tia?” E continuou assistindo televisão. Parecia não se importar. Mas de “tempos em tempos” ela ia até o espelho do banheiro, olhava-se e via que tudo “parecia” normal. Apesar do cabelo estar caindo MUITO e RÁPIDO, ela não conseguia notar a carequinha. De frente, ainda parecia ter muito cabelo. Com o passar dos dias, o cabelo ainda cairia muito, mas inicialmente ver aquele tanto de cabelo no chão não a incomodava, enquanto ela olhasse no espelho e parecesse “normal”.
Saímos para passear, fomos até Jundiaí passar o dia com amigos maravilhosos e que Ana Luiza sempre gostou: Tio Alencar e tia Nalva. Ele, que tinha perdido o pai recentemente para o Câncer, preparou toda a casa e o almoço para receber a visita especial. Ela adorou o passeio. Conversou bastante, comeu razoavelmente bem e o cabelo caindo demais. Fomos até o parque da cidade, e naquele dia eu notei que ela já estava entendo a mudança. Ela viu duas meninas brincando de bola. A mãe delas convidou Ana Luiza e ela, quietinha e cabisbaixa, disse que não podia. Nessa hora, ela quis ir pra casa. Disse que não tinha a menor graça ir passear e não poder brincar.
A noite, na hora em que nos preparávamos para dormir, Ana Luiza notou que estava ficando careca. Ela foi para o banheiro, para mais uma “checagem” e ao notar a cabecinha com pouco cabelos começou a chorar e me chamou baixinho: “Mamãe, meu cabelo caiu muito. Eu gostava tanto do meu cabelo e agora tô ficando careca”. Ela começou a chorar, soluçando, pela primeira vez. Era um choro sentido, dolorido demais. Ela não gritou e nem se irritou. Marcos veio até o banheiro e nos arrastou de volta para o quarto. Nos sentamos na cama. Ela, no colo do Marcos e nós três, abraçados, choramos muito. Deixamos ela chorar. Ninguém falava nada. Parece que naquele momento caiu a ficha de todo mundo. De coração muito apertado, Marcos começou a explicar que o cabelo nasceria de novo E que quem devia chorar era ele, que também estava careca, mas o cabelo não nasceria mais. Ela deu um sorriso e obviamente, concordou.
Ela finalmente se abriu e disse que não queria ficar careca porque no hospital tinha visto muitos carecas, mas nenhuma menina, só meninos. E ela seria a única menina careca. Pacientemente, expliquei que ela não via meninas porque elas usavam perucas, lenços ou chapéus. Que muitas mulheres também faziam esse tratamento e que da próxima vez que fôssemos ao hospital, mostraria algumas delas.
No dia seguinte ela ainda estava chateada. Toda vez que se olhava no espelho, apontava para a cabeça e fazia uma carinha triste. No terceiro dia, já nem se importava mais. Perguntei se ela gostaria de cortar o cabelo todo, para tirar os fiapos soltos e ela foi veemente: “Não, mamãe! Deixa meu cabelo aqui! Se ele cair tudo bem, mas ele ainda não caiu todo!” Explicamos que tínhamos guardado o cabelo dela para fazer um peruca bem bonita. Ela não quis nem ouvir ou mesmo ver nos sites mulheres com peruca!
Recebemos dezenas de visitas. Pessoas que ainda não conhecíamos ligavam ou mandavam e-mail pedindo para nos visitar. Na internet, aumentava o número de pessoas querendo acompanhar e nos ajudar de alguma forma. Algumas pessoas, , insistiam para que a gente aceitasse valores em dinheiro, para ajudar no tratamento. Outras tantas, não deixavam de ligar e perguntar, a todo momento, como tudo aquilo tinha acontecido. Foi aí que resolvi começar a escrever no blog. E minha inspiração para a escolha do nome, foi o que a psicóloga havia dito alguns dias antes: “Vida normal, mãezinha!”
Na véspera da internação, finalmente tivemos a constatação: Ana Luiza estava com a audição perfeita nos dois ouvidos! Ela submeteu-se a uma audiometria no hospital e o resultado apontou que ela estava com a audição perfeita nos dois ouvidos. E, visualmente, o olho esquerdo também parecia normal. Perguntei se ela ainda via “de dois” e ela disse que não. Só nos restava a dúvida se aquilo era o efeito dos corticoides diminuindo o edema ao redor do tumor ou se já era a quimioterapia fazendo efeito. Não podíamos deixar de agradecer às orações de todos, em favor da nossa filha. Mas não podíamos deixar, principalmente, de agradecer a Deus por esta primeira vitória.
Chegava o dia de mais uma internação. Alguns dos meus familiares estavam em SP: Tio Alex, meu irmão, minha cunhada Aline, tia Camila e vovó Aldenora. Ana Luiza não queria voltar ao hospital de jeito nenhum. Estava apavorada com a possibilidade de tomar picadas. Entretanto era preciso repetir o exame de sangue e levar o resultado para a médica, na consulta pré-internação. Aquele valor não saía da minha cabeça: “Tem que dar mais de 700! Tem que dar mais de 700!”
Ao abrir o resultado dos exames, os leucócitos estavam acima de 3000, totalmente dentro da normalidade. Me deu uma felicidade tão grande! Uma vontade de pular de alegria. A médica olhou para Ana Luiza e rindo disse: “Você é bem forte, hein mocinha?!?” Marcos perguntou sobre a melhora do ouvido e da visão e a médica foi cautelosa: “Provavelmente esta resposta é devido à quimioterapia e aos corticoides, mas definitivamente, um bom sinal”.
Marcos e eu nos olhamos e a sensação que tive foi que respiramos juntos e aliviados. Felizes da vida, fomos para o 1º andar, regularizar os trâmites da internação. Como ainda era cedo, a médica disse que se poderíamos dar entrada no hospital um pouco mais tarde, assim a gente poderia aproveitar o tempo e passear um pouco com ela. Ana Luiza olhou para o Marcos e pediu: “Pai, podemos ir comer mais um Mclanche feliz?” Marcos riu, sabendo que ela estava mais a fim dos brinquedinhos do que da comida em si. Mas, como comer, principalmente em véspera de quimioterapia, era fundamental, nós fomos.
Voltamos ao hospital para a internação e Ana Luiza estava ansiosa demais, falando muito, rindo. Na verdade, eu, que conheço minha pequena, sabia que ela estava preocupada, pois aquela euforia toda não era de alegria. Era nervosismo. Chegamos ao hospital e minha cunhada foi ao banheiro da recepção. Ana Luiza pediu para ir junto. Chegando ao banheiro Ana Luiza confidenciou a ela: “Tia Aline, posso te falar uma coisa? Você promete que não conta para mamãe? Eu estou morrendo de medo desse hospital! Eu estou rindo e tudo mais, mas estou com muito medo, isso sim! Mas não queria que minha mãe ficasse preocupada”
Depois dos trâmites feitos, Aline me chamou no canto da sala e engolindo o choro, contou o que Ana Luiza tinha dito. De onde estávamos, olhei para Ana Luiza e via ela abraçando o recepcionista do hospital, falando alto, cumprimentando todo mundo, contando piada. Uma alegria só.
Eu já sabia que ela estava apavorada, mas sabia também que ela era uma fortaleza. Eu também precisava ser, pois a quimioterapia desta vez não seria fácil.
Enquanto a preocupação da pequena era o McLanche Feliz que Marcos comprou assim que saímos do hospital e que ela estava louca para devorar (e devorou!), a minha eram as recomendações e precauções que os médicos haviam nos dado.
Eu ainda estava meio assustada. Durante os últimos 3 anos, Ana Luiza não tinha tido sequer um resfriado. Eu não sabia mais o que era dar remédios no horário certo, monitorar sinais vitais o tempo todo, triplicar a higienização no preparo de alimentos e nos cuidados pessoais. Os médicos disseram que qualquer alteração, e mesmo que ela tivesse apenas 37,5ºC de temperatura, deveríamos voltar correndo para o hospital.
Os médicos tinham dado tantas informações sobre os cuidados que eu não sabia por onde começar. Mas o Vovô Calmon já havia limpado toda a suíte do apartamento e vovó Eliane também estava preocupada em deixar tudo no lugar a espera da pequena. Todo mundo estava apreensivo, todos querendo ajudar e graças a Deus podíamos contar com o amor e carinho dos nossos pais.
Ana Luiza estava feliz por ter saído do Hospital. Os médicos já tinham nos informado que as reações da quimioterapia se manifestariam imediatamente, pois o protocolo de tratamento que ela estava fazendo, utilizava várias drogas e em altas dosagens. A queda do cabelo ocorreria logo, assim como as náuseas, enjoos, falta de apetite e o risco de infecções pela queda da imunidade.
Aproveitando que a queda na imunidade demoraria alguns dias, fomos cortar o cabelo e aproveitar para passear de Metrô até o shopping onde ficava o salão de beleza. Ao chegar ao salão o primeiro drama começou. Inicialmente ela detestou a ideia de ficar “com cabelo de menino”. Mas o cabeleireiro fez um corte bem moderno e ela adorou. Ela estava adorando o novo “look”. Ela conseguia se alimentar normalmente, não teve nenhuma alteração. Ainda estava curtindo os presentes todos e as visitas. Os efeitos colaterais da quimioterapia, ela pouco sentiu. A única vez que ela apresentou um episódio de vômito, foi no segundo dia em casa. A médica havia receitado 3 medicamentos para enjoo (Plasil, Dramin e Vonau) caso ela tivesse vômitos. Se ela estivesse bem, eles poderiam ser suspensos. Como Ana Luiza estava bem, resolvemos suspender os 3 no segundo dia e obviamente ela passou mal. Depois, notamos que para ela ficar bem, sem ficar nauseada e reclamando de odores, era necessário dar continuamente o Dramin e o Vonau. Assim ela se alimentava melhor e o que comia ficava no estômago.
Ela ainda tinha mais duas aplicações de quimioterapia para fazer, antes de internar novamente para mais uma aplicação “grande”. Após 7 dias da primeira internação, lá fomos nós para o setor de quimioterapia do hospital. Ela estava tranquila. Ficou apenas um pouco apreensiva pois o acesso seria feito no cateter implantado, mas foi tudo ótimo. Ela não sentiu nada.
Ela continuou indo ao hospital para as consultas com a psicóloga e só reclamou do horário: “Credo mãe, porque essa Leila tem que marcar essa conversinha tão cedo!?!”
A psicóloga, desde a primeira consulta com Ana Luiza, quando ela ainda estava internada, disse que ela era muito inteligente. Que ela tinha um vocabulário muito rico e entendia tudo o que estava acontecendo. Ela tinha um QI elevado para a idade e era capaz de compreender tudo sobre a doença e a situação em que ela se encontrava. Pediu que a gente explicasse tudo a medida que ela perguntasse e sempre fizéssemos isso de forma muito objetiva e tranquila.
Na primeira consulta, deixou claro para nós dois, Marcos e eu, que Ana Luiza deveria ser tratada normalmente, que Ana Luiza deveria ter uma vida normal. Enquanto ela falava eu pensava: “Normal?! Vida normal? Como?!?!”
Ela disse que precisávamos manter a disciplina, as regras, os horários, a rotina. Ana Luiza precisava “sentir” que aquilo era um tratamento. Pediu que não a “mimássemos” demais, sob pena de ter uma filha que no futuro, não teria interesse em ficar boa, pois ficar doente era “legal”. Pediu que a gente incentivasse uma vida normal. Que era importante ela caminhar sozinha, fazer as coisas sozinha. Nada de carregar no colo a todo momento, nada de tratá-la como um bebê e sim como a criança inteligente de 7 anos que ela era.
Marcos levantou a plaquinha do “eu já sabia”. Eu vesti a carapuça. Tudo que eu queria era ficar segurando ela no colo, como se de alguma forma o abraço pudesse tirar aquela doença horrorosa de dentro dela. Quando a psicóloga falava em vida normal, só conseguia pensar na nossa vida em Manaus: aquilo sim era normal. Acordar cedo, deixá-la na escola, passear, ir na churrascaria predileta dela, tomar sorvete, andar de bicicleta, jogar Nintendo Wii, fazer reuniões com os amigos em casa, fazer guerra de balão d'água no condomínio, passear com o Luck, fazer mil recadinhos e espalhar pela casa, ir buscá-la na casa da tia Luciana toda suada de tanto correr com a Darah, brigar pra ela ir tomar banho, brigar pra ela sair do banho, banho de mangueira, colocar ela dentro do carrinho de supermercado, assistir Discovery Kids, esconder as lembrancinhas dos aniversários de criança para o papai não comer todos os doces... aquilo sim era normal. Nada do que estávamos vivendo naquele momento era normal.
Eu precisa entender que nossa vida havia mudado para sempre. Mas a dor ainda era grande. Eu ainda sentia (na verdade, ainda sinto), muita dificuldade em acreditar que tudo aquilo estava acontecendo. Mas eu precisava encarar a situação.
Na primeira consulta de acompanhamento, Ana Luiza precisaria submeter-se a um exame de sangue antes de ser avaliada pelos médicos. Ela estava apavorada com as agulhas. Os bracinhos ainda estava cheios de hematomas, mas ela cedeu e, contando até três, respirou fundo e deixou a enfermeira picar o braço.
O resultado mostrou que apesar dela estar radiante, feliz e tranquila, seu organismo estava praticamente sem qualquer defesa. Leucócitos e demais componentes da série branca do sangue estavam praticamente zerados. O valor mínimo de leucócitos é de 1500, Ana Luiza estava com 112. Aquilo deu um desespero. Imaginar o corpo da minha filha sem qualquer defesa, era assustador. A médica informou que ela só poderia internar para fazer o próximo ciclo de quimioterapia, se esse valor subisse, no mínimo, para 700. Além disso, ela não poderia ter nenhuma febre ou infecção. O próximo exame seria antes de internação. Eu não iria morrer antecipadamente. Se tem algo que realmente temos aprendido, é viver cada dia de uma vez.
Fizemos nosso primeiro passeio. Em um dia frio, mas não tanto quanto os anteriores, fomos conhecer o Parque Ibirapuera. A médica disse que poderíamos passear, desde que fossem locais abertos. Nada de shopping, cinema e afins. Ana Luiza ficou radiante logo que chegou! Dezenas de crianças, cachorros de diversas raças, pessoas com visuais de “tribos”, tudo muito diferente. E, como ela pôde constatar também, as diferenças também no nosso estilo de vida. Ela estava louca para ir aos inúmeros brinquedos do parque, mas a presença de outras crianças e mesmo a falta de uma higienização especial a impediria. Ela ficou chateada, claro: “Como o passeio pode ser legal se não posso brincar”? Dizia muito chateada. Marcos prometeu a ela que no próximo passeio, eles andariam em uma bicicleta diferente, uma bicicleta para 2 pessoas. Ela imediatamente abriu um sorriso: “Então eu vou atrás e não vou pedalar, é tu que vai fazer força!”.
Mas uma mudança boa também era notada. Ela praticamente já não virava o rosto para evitar a visão dupla e também já atendia o telefone usando o ouvido esquerdo. Para nós, aquilo significava a esperança de que o tumor já não estava pressionando tanto as estruturas dentro da cabeça dela, ou seja, ele poderia estar diminuindo. Esperança e fé.
Na segunda aplicação de quimioterapia “menor”, ao levantar da maca para irmos pra casa, tufos de cabelo ficaram no travesseiro. Me deu um frio na barriga. Agora Ana Luiza perceberia que a vida realmente estava diferente.
Sentada no sofá, assistindo televisão com a tia Camila, ela passou a mão no cabelo, saiu um tufo enorme na mãozinha e ela disse: “Nossa! Meu cabelo tá caindo muito, né tia?” E continuou assistindo televisão. Parecia não se importar. Mas de “tempos em tempos” ela ia até o espelho do banheiro, olhava-se e via que tudo “parecia” normal. Apesar do cabelo estar caindo MUITO e RÁPIDO, ela não conseguia notar a carequinha. De frente, ainda parecia ter muito cabelo. Com o passar dos dias, o cabelo ainda cairia muito, mas inicialmente ver aquele tanto de cabelo no chão não a incomodava, enquanto ela olhasse no espelho e parecesse “normal”.
Saímos para passear, fomos até Jundiaí passar o dia com amigos maravilhosos e que Ana Luiza sempre gostou: Tio Alencar e tia Nalva. Ele, que tinha perdido o pai recentemente para o Câncer, preparou toda a casa e o almoço para receber a visita especial. Ela adorou o passeio. Conversou bastante, comeu razoavelmente bem e o cabelo caindo demais. Fomos até o parque da cidade, e naquele dia eu notei que ela já estava entendo a mudança. Ela viu duas meninas brincando de bola. A mãe delas convidou Ana Luiza e ela, quietinha e cabisbaixa, disse que não podia. Nessa hora, ela quis ir pra casa. Disse que não tinha a menor graça ir passear e não poder brincar.
A noite, na hora em que nos preparávamos para dormir, Ana Luiza notou que estava ficando careca. Ela foi para o banheiro, para mais uma “checagem” e ao notar a cabecinha com pouco cabelos começou a chorar e me chamou baixinho: “Mamãe, meu cabelo caiu muito. Eu gostava tanto do meu cabelo e agora tô ficando careca”. Ela começou a chorar, soluçando, pela primeira vez. Era um choro sentido, dolorido demais. Ela não gritou e nem se irritou. Marcos veio até o banheiro e nos arrastou de volta para o quarto. Nos sentamos na cama. Ela, no colo do Marcos e nós três, abraçados, choramos muito. Deixamos ela chorar. Ninguém falava nada. Parece que naquele momento caiu a ficha de todo mundo. De coração muito apertado, Marcos começou a explicar que o cabelo nasceria de novo E que quem devia chorar era ele, que também estava careca, mas o cabelo não nasceria mais. Ela deu um sorriso e obviamente, concordou.
Ela finalmente se abriu e disse que não queria ficar careca porque no hospital tinha visto muitos carecas, mas nenhuma menina, só meninos. E ela seria a única menina careca. Pacientemente, expliquei que ela não via meninas porque elas usavam perucas, lenços ou chapéus. Que muitas mulheres também faziam esse tratamento e que da próxima vez que fôssemos ao hospital, mostraria algumas delas.
No dia seguinte ela ainda estava chateada. Toda vez que se olhava no espelho, apontava para a cabeça e fazia uma carinha triste. No terceiro dia, já nem se importava mais. Perguntei se ela gostaria de cortar o cabelo todo, para tirar os fiapos soltos e ela foi veemente: “Não, mamãe! Deixa meu cabelo aqui! Se ele cair tudo bem, mas ele ainda não caiu todo!” Explicamos que tínhamos guardado o cabelo dela para fazer um peruca bem bonita. Ela não quis nem ouvir ou mesmo ver nos sites mulheres com peruca!
Recebemos dezenas de visitas. Pessoas que ainda não conhecíamos ligavam ou mandavam e-mail pedindo para nos visitar. Na internet, aumentava o número de pessoas querendo acompanhar e nos ajudar de alguma forma. Algumas pessoas, , insistiam para que a gente aceitasse valores em dinheiro, para ajudar no tratamento. Outras tantas, não deixavam de ligar e perguntar, a todo momento, como tudo aquilo tinha acontecido. Foi aí que resolvi começar a escrever no blog. E minha inspiração para a escolha do nome, foi o que a psicóloga havia dito alguns dias antes: “Vida normal, mãezinha!”
Na véspera da internação, finalmente tivemos a constatação: Ana Luiza estava com a audição perfeita nos dois ouvidos! Ela submeteu-se a uma audiometria no hospital e o resultado apontou que ela estava com a audição perfeita nos dois ouvidos. E, visualmente, o olho esquerdo também parecia normal. Perguntei se ela ainda via “de dois” e ela disse que não. Só nos restava a dúvida se aquilo era o efeito dos corticoides diminuindo o edema ao redor do tumor ou se já era a quimioterapia fazendo efeito. Não podíamos deixar de agradecer às orações de todos, em favor da nossa filha. Mas não podíamos deixar, principalmente, de agradecer a Deus por esta primeira vitória.
Chegava o dia de mais uma internação. Alguns dos meus familiares estavam em SP: Tio Alex, meu irmão, minha cunhada Aline, tia Camila e vovó Aldenora. Ana Luiza não queria voltar ao hospital de jeito nenhum. Estava apavorada com a possibilidade de tomar picadas. Entretanto era preciso repetir o exame de sangue e levar o resultado para a médica, na consulta pré-internação. Aquele valor não saía da minha cabeça: “Tem que dar mais de 700! Tem que dar mais de 700!”
Ao abrir o resultado dos exames, os leucócitos estavam acima de 3000, totalmente dentro da normalidade. Me deu uma felicidade tão grande! Uma vontade de pular de alegria. A médica olhou para Ana Luiza e rindo disse: “Você é bem forte, hein mocinha?!?” Marcos perguntou sobre a melhora do ouvido e da visão e a médica foi cautelosa: “Provavelmente esta resposta é devido à quimioterapia e aos corticoides, mas definitivamente, um bom sinal”.
Marcos e eu nos olhamos e a sensação que tive foi que respiramos juntos e aliviados. Felizes da vida, fomos para o 1º andar, regularizar os trâmites da internação. Como ainda era cedo, a médica disse que se poderíamos dar entrada no hospital um pouco mais tarde, assim a gente poderia aproveitar o tempo e passear um pouco com ela. Ana Luiza olhou para o Marcos e pediu: “Pai, podemos ir comer mais um Mclanche feliz?” Marcos riu, sabendo que ela estava mais a fim dos brinquedinhos do que da comida em si. Mas, como comer, principalmente em véspera de quimioterapia, era fundamental, nós fomos.
Voltamos ao hospital para a internação e Ana Luiza estava ansiosa demais, falando muito, rindo. Na verdade, eu, que conheço minha pequena, sabia que ela estava preocupada, pois aquela euforia toda não era de alegria. Era nervosismo. Chegamos ao hospital e minha cunhada foi ao banheiro da recepção. Ana Luiza pediu para ir junto. Chegando ao banheiro Ana Luiza confidenciou a ela: “Tia Aline, posso te falar uma coisa? Você promete que não conta para mamãe? Eu estou morrendo de medo desse hospital! Eu estou rindo e tudo mais, mas estou com muito medo, isso sim! Mas não queria que minha mãe ficasse preocupada”
Depois dos trâmites feitos, Aline me chamou no canto da sala e engolindo o choro, contou o que Ana Luiza tinha dito. De onde estávamos, olhei para Ana Luiza e via ela abraçando o recepcionista do hospital, falando alto, cumprimentando todo mundo, contando piada. Uma alegria só.
Eu já sabia que ela estava apavorada, mas sabia também que ela era uma fortaleza. Eu também precisava ser, pois a quimioterapia desta vez não seria fácil.