Antes da internação para fazer quimioterapia sempre tem a consulta de rotina para verificar as condições do sangue da pequena. Felizmente, após 30 dias sem quimioterapia, o hemograma dela estava ótimo (para uma criança em tratamento de câncer, obviamente!).
Mas o melhor resultado de exame que tivemos naquela consulta, definitivamente, não foi o exame de sangue. Foi algo totalmente inesperado. Nem lembrávamos da biópsia do material retirado na cirurgia. Mas o oncologista, de frente pro computador, imprimiu o resultado e nos entregou: “Ausência de células neoplásicas no material analisado”.
Não sabíamos nem o que falar. Marcos e eu nos entreolhamos e demos uma risada! “Então não tinha mais nada?” - Perguntou Marcos. O oncologista disse: “Sim! Não tinha mais nada. Mas se não tivéssemos feito a cirurgia, nunca saberíamos.”
Foi impossível não pensar nas pessoas que, antes da cirurgia, diziam que não ia aparecer mais nada... Tio Fernando, Tio Buri, Josely, Simão e a própria Ana Luiza. Todos eles podiam levantar a plaquinha: “Eu já sabia!”
Ana Luiza foi logo dizendo: “Eu bem que avisei que não precisava dessa cirurgia, mas vocês não me escutaram. Agora tô aqui, com a cabeça costurada...” As risadas da gracinha da pequena, se misturaram com a alegria eufórica de mais uma notícia maravilhosa! Ainda meio assustada, tudo que eu pensava era: “Queria tanto ter essa certeza no meu coração. Essa fé inabalável, que a pequena tem. Que vergonha de mim...”
Perguntei ao médico quais seriam os próximos passos, mas nem ele sabia dizer ao certo. Nenhum dos médicos do setor de oncologia pediátrica do hospital imaginava uma resposta tão excelente à quimioterapia. Um rabdomiossarcoma espalhado por todo o corpo (como era o caso da Ana Luiza) dificilmente respondia de forma tão rápida, desaparecendo completamente apenas com a quimioterapia. Os médicos, no seu estilo lacônico, característico da linguagem científica, demonstravam seu entusiamo com a regressão do tumor apenas dizendo: “A resposta à quimioterapia foi brilhante. Excelente.”
Eles já tinham comentado conosco sobre o transplante autólogo – modalidade de transplante onde são coletadas células tronco hematopoiéticas (que dão origens aos componentes sanguíneos) e, após a aplicação de altas doses de quimioterapia (que de tão forte “mata” a medula óssea – produtor de células sanguíneas), elas são reinjetadas e a medula volta a funcionar, produzindo todos os componentes sanguíneos imprescindíveis para uma vida normal.
O transplante autólogo só é indicado para determinados tipos de câncer, conforme os critérios estabelecidos por institutos de pesquisas e comitês de ética, nacionais e internacionais. O principal critério para a adoção dessa modalidade de tratamento é que todas as metástases e o tumor principal tenham sido eliminados, restando muito pouco, ou apenas câncer a nível celular. Só assim, o transplante pode ser indicado com segurança e com chances de sucesso, ou seja, diminuindo as chances de recidiva precoce do tumor - o que é característico do Rabdomiossarcoma.
O rabdomiossarcoma metastático não possui indicação de trasplante autólogo pois existem poucos estudos que estabeleçam essa modalidade de tratamento como sendo eficaz para evitar recidivas. Mas, o grande motivo de não existirem estudos, é que não existe uma quantidade suficiente de crianças que sobrevivam e que consigam chegar até essa fase do tratamento.
Se por um lado saber disso é extremamente assustador, afinal Ana Luiza é uma das crianças que possuem o pior tipo de rabdomiossarcoma existente, por outro lado nos faz ter a certeza e a convicção de que Deus foi extremamente misericordioso conosco e que tudo isso tem um objetivo. Sem dúvidas, passar por essa experiência tem um propósito muito especial, que nos forneceu a chance de mudarmos completamente nossas vidas, perspectivas e atitudes diante das pessoas e da vida.
Internamos para o que seria a última quimioterapia de Ana Luiza antes do suposto transplante autólogo, que seus médicos estavam totalmente inclinados a submetê-la.
Assim que chegamos ao hospital, recebemos a visita muito especial de uma pessoa que também estava enfrentando sua própria luta contra o câncer – a Fabiana.
Mulher linda, por dentro e por fora. Entrou em contato conosco através do blog e combinamos de nos encontrar, pois tanto ela quanto Ana Luiza estariam fazendo quimioterapia no mesmo período. Nós já tínhamos nos conhecido antes, quando ela veio visitar Ana Luiza no pós-cirúrgico, mas essa visita foi especial, pois pudemos conversar bastante e eu pude constatar como os problemas não escolhem momento, nem pessoas.
Fabiana é uma mulher jovem, linda e muito simpática, que teve um diagnóstico devastador de câncer na região abdominal alguns meses após seu casamento. Ela morava na Europa há 10 anos e vivia sua vida feliz, entre sua rotina de trabalho e as reuniões nas casas de amigos e familiares do marido. Recém casada e ainda vivendo um período que para muitos casais é mágico – o início do casamento - resolveu investigar as dores constantes que tinha no estômago e o emagrecimento repentino, quando finalmente descobriu o câncer – incomum para a idade dela e de difícil tratamento.
Desnorteada, resolveu voltar ao Brasil para contar pessoalmente a trágica notícia a sua mãe e familiares, buscando neles, o apoio que é fundamental para um tratamento tão rigoroso como o que ela enfrentaria. Optou por fazer o tratamento no Brasil (no A. C. Camargo, onde seria atendida pelo SUS, após uma longa fila de espera, mas evitando os gastos excessivos que teria caso fizesse o tratamento em Portugal, onde morava).
Infelizmente, seu marido não quis dividir com ela esse fardo e a abandonou sozinha, numa luta extremamente desleal, onde a presença de um companheiro parece ser fundamental. Foi inevitável não me emocionar com sua força. Apesar da triste história (e de tantas outras que vamos conhecendo pelo caminho), Fabiana seguia sua vida. Sem seu companheiro e ainda muito machucada pelo abandono inesperado, ela encontrou forças nos familiares, amigos e pessoas que conheceu ao longo de sua jornada.
Histórias como a de Fabiana e de inúmeras pessoas que conheci, nos mostram o que é problema de verdade. E a gente passa e enxergar as “dificuldades” do dia a dia com tanto desdém que ficamos até meio chatos.
Mas depois de devidamente alojados no quarto, a primeira pergunta de Ana Luiza foi: “Mãe, quero passear lá fora. Podemos ir ao quarto do Arthur? Ele ainda está no hospital, né?
Aquela pergunta me deu um frio na barriga. Sem saber explicar que o Arthur havia falecido, pedi pra que ela me aguardasse no corredor, enquanto eu chamava o Marcos.
Cheios de dedos, explicamos que o Arthur tinha falecido, que estava com papai do céu, sem sentir dor nenhuma. Com uma cara de pavor ela retrucou: “Ele morreu? O Arthur morreu?” Eu imaginava a tristeza dela, principalmente porque a pequena nunca teve contato tão próximo com alguém que tivesse falecido e o pior: de uma doença que ela também tinha, afinal o Arthur também era portador de um rabdomiossarcoma.
Ela não quis mais passear. Quis voltar para o quarto imediatamente e os olhos cheios de lágrimas me deixaram com um nó na garganta. Marcos foi mostrar as notícias sobre o Arthur na internet. “E os pais dele, mamãe? E a vovó dele? Eles devem estar muito tristes...” Disse Ana Luiza, ainda sem acreditar.
Conversamos muito, Marcos explicou que Arthur estava no céu e que estava bem, sem dores, sem doença nenhuma. E que seus pais, apesar da tristeza de terem perdido o lindo filho, entendiam que ele estava bem e feliz.
Após algumas horas vendo e lendo tudo sobre o Arthur na internet, finalmente Ana Luiza entendeu a situação e simplesmente voltou ao normal. Foi passear pelos corredores e brincar. Mais uma lição que a pequena me dava. Ela demonstrou que a vida continua e que se ele está bem, porque ficar se lamentando? Quando eu soube da morte do Arthur, fiquei extremamente abalada por semanas e ainda hoje me entristeço quando lembro das palavras de sua mãe e do amor de seus familiares. Mas Ana Luiza não. Ela é, definitivamente, melhor do que eu.
A quimioterapia começou bem. Seria o mesmo esquema do último ciclo: dois dias de drogas “menos agressivas” e poderíamos ir pra casa. Entretanto, a equipe de oncologistas pediátricos veio até o quarto e nos informou que eles haviam definido os próximos passos: Ana Luiza seria submetida ao transplante autólogo de medula óssea. Para tanto, eles aproveitariam esta internação para implantar o cateter central por onde coletariam as células tronco e as reinjetariam posteriormente.
Os médicos explicaram que, diferente do cateter que ela já utilizava para receber a quimioterapia, este cateter central era externo, com duas vias e um tanto desconfortável – mais tarde entendi que eles usaram de muito eufemismo com relação ao desconforto do cateter. Por ser externo e precisar de curativos diários, o risco de infeccionar era muito elevado, mas que ele era imprescindível para a realização dos procedimentos do transplante.
No dia em que deveria receber a alta hospitalar, ao invés de ir pra casa ela foi para o centro cirúrgico para colocar o tal cateter. Ela estava irredutível, não queria “de jeito nenhum” ir novamente para “aquele lugar horrível”... Mas foi paparicada pelas enfermeiras e rapidamente cedeu, apenas enfatizando que não ia querer “cheirinho” nenhum, se referindo a anestesia inalatória feita com máscara facial. Exatamente como da vez anterior, eu mesma a posicionei na mesa de cirurgia. Rapidamente ela dormiu e eu deixei a sala de cirurgia.
O fato é que nunca vou me acostumar com isso. Vê-la tão indefesa, desmaiada e sendo manipulada por tantas pessoas é sempre desesperador. A sensação é a mesma desde a primeira vez que ela foi para um centro cirúrgico. Acho que nunca vou deixar de temer e me preocupar!!
O procedimento foi muito rápido. Em 40 minutos tudo havia terminado e ela estava na recuperação anestésica. Voltar da anestesia geral é sempre ruim e pra piorar, tinha um cateter com 15cm de plástico pra fora do pescoço dela. Parecia uma grande seringa espetada em seu pescoço. A coisa mais feia e desconfortável que eu já tinha visto. Mas felizmente, os médicos aproveitaram que ela estava anestesiada e tiraram os pontos da cirurgia da cabeça, o que a poupou de mais um incômodo.
Assim que ela acordou da anestesia, achou “um absurdo” aquele cateter. Chorando, ela falava mal de todo mundo: “Esses médicos são terríveis, mãe! Eu não consigo nem mexer o pescoço! Que coisa mais horripilante! Chama essas enfermeiras aí e avisa que eu quero ir embora desse lugar!!”
Voltamos para o quarto no 5º andar e Ana Luiza virou um robô: não mexia, sob qualquer hipótese, o pescoço. Andava toda torta e dura, como se tivesse engolido um cabo de vassoura. Tudo incomodava, principalmente dormir, pois só conseguia ficar em uma única posição. Deitar e levantar da cama era um suplício pois ela sempre sentia muita dor.
No dia seguinte, a chefe da oncologia pediátrica nos chamou até o ambulatório de pediatria para conversar sobre os próximos passos do tratamento. Ela, que sempre demonstrou certa frieza e distanciamento, nos explicava com um olhar mais esperançoso que o transplante, apesar de ainda não ser protocolo em tratamento de rabdomiossarcoma, era uma estratégia que valia a pena tentar, em virtude da excelente resposta a quimioterapia que Ana Luiza tivera.
Ela enfatizou, entretanto, que a equipe estava tendo dificuldades em definir qual seria o condicionamento – drogas utilizadas na quimioterapia de altas doses - que seria aplicado em Ana Luiza. Eles haviam entrado em contato com diversos hospitais, tanto no Brasil, quanto no Exterior e cada um deles dava uma estratégia diferente. O caso de Ana Luiza era completamente incomum e portanto, quase não existiam estudos de caso, artigos ou relatos em outros hospitais de um caso clínico parecido. Sendo assim, o transplante poderia ser um tratamento definitivo ou não. Era um risco que eles estavam assumindo, em virtude da rápida e excelente resposta ao tratamento com quimioterápicos.
Por um lado aquilo me deixava convicta da cura da minha pequena, do milagre recebido e da benção que nunca seria suficientemente agradecida por mim e meus familiares. Mas por outro lado, tudo que a médica explicava me deixava com os nervos a flor da pele e pensando bobagem: “Então os médicos vão testar isso em Ana Luiza? Então eles vão tirar da cabeça deles o que fazer com ela? ” - Que sufoco. Meu coração estava doído demais.
Enfatizou também que quando a medula fosse reimplantada, poderia levar algum tempo até ela voltar a funcionar perfeitamente, o que aumentava os riscos de infecção e dias de internação.
“Mas isso vai curá-la?” Perguntei, de olhos arregalados. “Não sabemos, pois como expliquei anteriormente, não existem muitos estudos. Mas esperamos que isso diminua as chances de recidiva do tumor e aumente a sobrevida da sua filha”.
Sobrevida! Como tenho raiva dessa palavra. Eu sei que os médicos a utilizam de forma acadêmica e blá, blá, blá... mas eu não quero que minha filha tenha “sobrevida”. Quero que ela fique curada e pronto. Não quero que ela seja uma estatística, tratada como um número (um óbito a mais ou a menos)... Ouvir as palavras da médica naquelas circunstâncias, era o mesmo que estar comendo um bolo e alguém passar e jogar areia em cima. Ela tentava ser simpática, mas me dava calafrios.
Antes de sairmos do ambulatório, a médica disse que Ana Luiza necessitaria se submeter a uma biópsia da medula, para garantir que não existia mais nenhuma célula cancerígena no material que seria transplantado. Ela disse que tentou subir com a equipe para fazer a biópsia no dia em que ela colocou o cateter, mas que não conseguiram, pois ela já estava acordando da anestesia.
Eu não gostei da ideia de levá-la mais uma vez ao centro cirúrgico. Mas não tínhamos opção e eu entendia certos “desencontros” da equipe, pois eles também estavam tentando assimilar a rapidez das coisas e a melhora repentina de Ana Luiza. Agora era o momento de manter a firmeza e correr atrás das autorizações do plano de saúde, uma dor de cabeça sempre presente quando se trata dessa doença. Felizmente, nosso plano de saúde era excelente e até aquele momento tivemos pouquíssimos aborrecimentos.
Voltamos para o quarto e Ana Luiza estava bem, mas ainda andava igual um robô. Contei que no dia seguinte ela teria que ir, novamente, ao Centro Cirúrgico e ela, como esperado, detestou a ideia. Mas entendeu a importância e disse que a biópsia “nem doía tanto assim”.
No dia seguinte, lá fomos nós, mais uma vez, para o bendito Centro Cirúrgico. Dessa vez, a oncologista preferida de Ana Luiza faria a biópsia, o que a deixou mais tranquila. Assim que o anestesista chegou, Ana Luiza foi logo dizendo: “Nada de cheirinho, viu? Eu detesto esse 'cheirinho fedidinho' que vocês colocam...” Fui até a sala de cirurgia e ela não queria ficar deitada na mesa de jeito nenhum. Dizia que no ato de deitar-se, o local onde tinha sido implantado o cateter, doía demais. E ela ficou sentada.
O anestesista pediu que segurássemos ela com cuidado, pois ele injetaria a anestesia e ela imediatamente perderia os sentidos. Um enfermeiro e eu estávamos ao lado da Ana Luiza quando ela praticamente desmaiou nos meus braços sob efeito da anestesia. Arrumei-a na mesa e os médicos, como sempre, apenas disseram: “Agora você já pode ir, mãe!” E o frio na barriga era exatamente o mesmo das outras vezes em que a deixei na mesa de cirurgia.
O procedimento foi mais rápido que o anterior e Ana Luiza foi para a recuperação anestésica aguardar para voltar para o 5º andar. Ela estava muito desconfortável. No pescoço tinha um cateter horrível, super desconfortável. E agora tinha dois furos nas costas, que a incomodavam bastante para levantar e sentar. Ficou no hospital mais um dia, não dormia bem e sentia dificuldade para andar normalmente.
Além de tudo, ela começou a tomar, duas vezes ao dia, um medicamento via subcutânea (injeção na barriga), para estimular a produção de células de defesa (leucócitos) e células tronco (CD34+). O pavor de injeção (seja do tamanho que for) era pior do que 1000 cateteres enfiados no pescoço e o choro desesperador era inevitável. E o pior, ela tomaria esse medicamento por uns bons 15 dias até ter células tronco suficientes para serem coletadas.
Enfim, recebemos alta. Os médicos vieram conversar e explicaram que aquele era o último ciclo de quimioterapia de Ana Luiza e que se tudo corresse dentro do cronograma, provavelmente no final de maio, receberíamos alta do tratamento, com remissão completa da doença, devendo vir ao hospital uma vez ao mês para exames e consultas de rotina.
Ouvir aquilo era maravilhoso, vocês não conseguem imaginar a alegria do meu coração! Saber que teríamos apenas o transplante e as 30 sessões de radioterapia para concluir o tratamento, era a melhor notícia possível! Quantas crianças não estavam lá, há anos, enfrentando um tratamento? Quantas famílias esperavam anos até conseguir voltar para suas cidades de origem e tocar a vida? E quantas, após anos de luta, viam seus filhos cada vez mais enfraquecidos diante da doença?
Quando chegamos em SP, não existia qualquer previsão para voltarmos para Manaus. Os médicos mais otimistas nos diziam que ela ficaria em tratamento em SP por pelo menos 1 ano e meio. A literatura científica era muito menos otimista e muitas vezes catastrófica, reafirmando inúmeras vezes as poucas chances de uma criança com rabdomiossarcoma metastático sobreviver ao tratamento.
E em apenas 4 meses o câncer de Ana Luiza desapareceu. O que minha família e meus amigos vivenciávamos era algo espetacular. E eu, com meu coração de mãe, não me permitia comemorar por completo. A celebração ocorreria no dia em que eu voltasse com minha filha para nossa casa em Manaus. No dia em que ela entrasse em seu quartinho cheio de bonecas e pulasse na cama! No dia em que eu sentisse o cheiro da minha casa, dos meus lençóis, da minha cozinha... Neste dia sem dúvidas eu me permitiria comemorar, pois finalmente estaríamos tentando voltar a ter nossa vida normal de sempre!
Sem dúvidas receber aquela notícia me deixava feliz. Entretanto, eu estava consciente de que ainda existia um longo e árduo caminho a percorrer. E de fácil, ele não teria absolutamente nada. Marcos voltou mais uma vez para Manaus e ficamos apenas nós três: Ana Luiza, minha mãe e eu.
Ao sair do hospital teríamos uma jornada cansativa: Diariamente, viríamos ao hospital, duas vezes ao dia, para que Ana Luiza recebesse as aplicações de Granulokine e fizesse os hemogramas. Todos os dias saíamos de casa com o céu ainda escuro, pegávamos um táxi, aguardávamos no laboratório, para ela coletar amostras de sangue e, em seguida, aguardávamos quase 1h para ela receber a dose de Granulokine e voltávamos pra casa. No fim da tarde, pegávamos outro táxi, esperávamos mais 1h para a aplicação do medicamento e voltávamos pra casa.
Os 2 primeiros dias foram bem difíceis, mas rapidamente Ana Luiza passou a tirar de letra. Sempre inventava uma brincadeira diferente, conversava com todos os atendentes e enfermeiros, fazia novas amizades e pronto: Aquilo não era nada demais. E o cateter nem incomodava mais.
Mas eu... bem, eu estava moída! Além da rotina desgastante eu não conseguia dormir direito, pois ficava vigiando o sono dela, com medo que ela deitasse por cima do cateter (colocado do lado esquerdo do pescoço) e prejudicasse de alguma forma a coleta das células.
Os médicos estimaram que após o 12º dia de aplicação de Granulokine, os leucócitos estariam bem elevados e ela poderia fazer um exame específico para detectar as células tronco CD34+ na corrente sanguínea. Todavia, 4 dias antes do esperado, os leucócitos haviam subido sobremaneira (50 mil leucócitos!!!) e a enfermeira do setor de transplante de medula pediu que viéssemos ao hospital para fazer o exame específico para avaliar a presença de células CD34+.
Depois de indas e vindas dentro do hospital por causa da falta de autorização do plano de saúde, paguei particular o tal exame e finalmente Ana Luiza conseguiu fazê-lo. Sem este exame, era impossível detectar a presença das células tronco na corrente sanguínea, o que atrasaria a possível coleta. Eu ficava imaginando qual o motivo do plano de saúde autorizar um transplante tão caro e não autorizar um exame de 400 reais, que é imprescindível para o procedimento.
Enfim... Feito o exame, a enfermeira pediu que fôssemos até o Banco de Sangue de SP, localizado dentro do hospital, pois eles seriam os responsáveis pela coleta das células. Os dois médicos nos explicaram como era feito o procedimento e que seria indolor, mas o medo do desconhecido é algo incontrolável. Só em visualizar aquela máquina de aférese enorme e barulhenta que seria utilizada para separar as células, Ana Luiza entrou em pânico achando que fosse sentir dor. Foi dureza convencê-la, mas entre choros e olhos arregalados, ela finalmente entendeu.
Eu precisava resolver inúmeras coisas ao mesmo tempo e, infelizmente, minha mãe tinha amanhecido com uma crise de coluna que a impedia de andar. Quem sabe o que é crise de hérnia discal entenderá a “invalidez” temporária que a pessoa é acometida quando entra em crise.
Minha mãe não é meu braço direito. Ela é meus dois braços e minhas duas pernas. Sem ela aqui desde o início, acho que eu teria sucumbido a primeira avalanche de problemas. Mas naquele dia ela estava impossibilitada, momentaneamente, de me ajudar com Ana Luiza enquanto eu resolvia as burocracias.
Mais uma vez eu contei com Marcos, que de longe me ajudava a resolver as dificuldades com o plano de saúde. E enquanto aguardávamos o resultado dos exames, eu corria de um lado para o outro, tentando que o plano aprovasse os outros exames que ela precisaria, caso o primeiro evidenciasse a presença insuficiente de células. Os médicos esclareceram que é necessária uma quantidade “n” de células tronco e que, as vezes, isso pode demorar algumas semanas, tendo que submetê-la a mais de uma coleta e mais de um exame até a quantidade de células ser suficiente para o transplante.
Eu não achava justo ter que pagar 400 reais todos os dias para fazer um exame que estava diretamente relacionado ao transplante, procedimento que já havia sido autorizado pelo plano de saúde. Aquilo era irracional e eu lutaria até o fim para que eles entendessem a bizarrice da situação.
Incrivelmente, Ana Luiza não precisou mais de nenhum exame, nem de continuar recebendo doses cavalares de Granulokine: O exame apontou que ela tinha 8 vezes mais células que o necessário para a coleta. Os médicos disseram que sua medula óssea, apesar da agressividade da quimioterapia que ela tinha se submetido, estava em excelentes condições e rapidamente respondeu ao estímulo do medicamento, produzindo células tronco de qualidade e em quantidade acima do esperado.
Fiquei extremamente feliz e Ana Luiza iniciou a coleta na mesma data do exame, dia 09/02, às 13h. A coleta das células consistia, basicamente, em: acoplar a máquina de aférese nas duas vias do cateter. Uma das vias, aspirava o sangue da corrente sanguínea e levava até a máquina, que fazia a separação dos componentes sanguíneos, ficando apenas com as células CD34. Estas células ficavam armazenadas em algo parecido com uma bolsa de sangue. Enquanto separava as células, a máquina devolvia, simultaneamente, o restante do sangue pela outra via do cateter.
O processo levava aproximadamente 5 horas para ser concluído e apesar do medo e do choro iniciais, após 1h de coleta, Ana Luiza caiu em sono profundo, acordando somente no término do procedimento.
Terminada a coleta, a bolsa contendo as células tronco era novamente submetida a análise laboratorial (desta vez, depois dos nossos apelos, o plano de saúde autorizou) e em seguida era congelada e ficava armazenada no Banco de Sangue, aguardando o momento de ser reinjetada em Ana Luiza, através do mesmo cateter utilizado na coleta das células.
Em virtude da rapidez com que o procedimento foi feito, o transplante autólogo foi agendado exatamente após 21 dias do último ciclo de quimioterapia, ou seja, dentro do prazo ideal para que ela se mantivesse sempre “protegida” pela quimioterapia, antes de iniciar um novo (e último) ciclo.
E quando eu respirei aliviada, pensando que teríamos alguns dias de “folga” antes da internação, os oncologistas nos “presentearam” com uma lista enorme de exames que Ana Luiza precisaria se submeter antes do transplante. E reiniciava outra maratona.
Consegui agendar todos os exames: Cintilografia óssea, tomografia, ressonância magnética, eletrocardiograma, ecocardiograma, exames laboratoriais (47 exames – foram coletados exatamente 9 tubos de amostras de sangue), consulta com estomatologista, raios X panorâmico dos dentes e consulta com dermatologista e dentista. Todos eles para a mesma semana.
Minha mãe (meus braços e pernas) precisou voltar para Boa Vista e “passou o bastão” para a outra avó: Minha sogra Eliane. Um dia antes de minha mãe voltar para Boa Vista, meus sogros chegaram e participaram da rotina exaustiva de exames.
Segundo os médicos, Ana Luiza precisava estar “100%” antes do transplante. Uma cárie nos dentes poderia ser o suficiente para ela ter uma infecção mais difícil de tratar, ou facilitar o ambiente para a proliferação da mucosite. Ainda tinha a preocupação com a unha do polegar da mão direita, que parecia ter um fungo. Os odontólogos parabenizaram a pequena: seus dentes estavam em perfeitas condições. Ela fez uma limpeza, mas não precisou de mais nada. E durante a consulta com a dermatologista, descobrimos que não se tratava de um fungo na unha e sim de um granuloma piogênico, uma espécie de tumor benigno, que ocorria geralmente em virtude de um trauma ou infecção na unha (algo que até agora não compreendi como aconteceu!!)
A dermatologista nos deu duas opções de tratamento: aplicar anestesia local e retirar parte da unha, ou cauterizar a lesão com ácido e usar iodo e rifamicina duas vezes ao dia.
Conversei com Ana Luiza e era difícil pedir que ela escolhesse entre dois procedimentos traumáticos e doloridos. A dermatologista, optou pelo menos traumático, mas a gritaria ao cauterizar a lesão foi absurda! Mas era algo necessário. Ver minha pequena berrando de dor, maltratava demais meu coração. Eu não podia fraquejar enquanto ela superava mais um desafio. Me restava manter a firmeza, dando toda força do mundo pra ela.
Os exames ocorreram todos dentro do planejado. Apesar da exaustão do corpo (e da mente) e de alguns atrasos que me faziam correr feito louca de um lado para o outro do hospital, tivemos êxito total na realização dos exames. Mais uma vez, Deus mostrava que estava sempre ao nosso lado.
Além da maratona desgastante no hospital, a rotina em casa também era bastante cansativa: Além da dificuldade para tomar banho por causa do cateter, ainda era necessário cuidar da unha duas vezes ao dia e refazer o curativo do cateter 1 vez ao dia. Além disso, tinha as diversas vitaminas e alimentos especiais, para tentar fortalecer sua imunidade antes do transplante.
Enfim, depois da correria, finalmente tivemos um final de semana de descanso. Marcos, que estava em Manaus, veio ficar conosco e a presença dele sempre nos fortalecia muito. Estarmos juntos na véspera desse importante passo no tratamento de Ana Luiza é muito importante para todos nós!
Mas o melhor resultado de exame que tivemos naquela consulta, definitivamente, não foi o exame de sangue. Foi algo totalmente inesperado. Nem lembrávamos da biópsia do material retirado na cirurgia. Mas o oncologista, de frente pro computador, imprimiu o resultado e nos entregou: “Ausência de células neoplásicas no material analisado”.
Não sabíamos nem o que falar. Marcos e eu nos entreolhamos e demos uma risada! “Então não tinha mais nada?” - Perguntou Marcos. O oncologista disse: “Sim! Não tinha mais nada. Mas se não tivéssemos feito a cirurgia, nunca saberíamos.”
Foi impossível não pensar nas pessoas que, antes da cirurgia, diziam que não ia aparecer mais nada... Tio Fernando, Tio Buri, Josely, Simão e a própria Ana Luiza. Todos eles podiam levantar a plaquinha: “Eu já sabia!”
Ana Luiza foi logo dizendo: “Eu bem que avisei que não precisava dessa cirurgia, mas vocês não me escutaram. Agora tô aqui, com a cabeça costurada...” As risadas da gracinha da pequena, se misturaram com a alegria eufórica de mais uma notícia maravilhosa! Ainda meio assustada, tudo que eu pensava era: “Queria tanto ter essa certeza no meu coração. Essa fé inabalável, que a pequena tem. Que vergonha de mim...”
Perguntei ao médico quais seriam os próximos passos, mas nem ele sabia dizer ao certo. Nenhum dos médicos do setor de oncologia pediátrica do hospital imaginava uma resposta tão excelente à quimioterapia. Um rabdomiossarcoma espalhado por todo o corpo (como era o caso da Ana Luiza) dificilmente respondia de forma tão rápida, desaparecendo completamente apenas com a quimioterapia. Os médicos, no seu estilo lacônico, característico da linguagem científica, demonstravam seu entusiamo com a regressão do tumor apenas dizendo: “A resposta à quimioterapia foi brilhante. Excelente.”
Eles já tinham comentado conosco sobre o transplante autólogo – modalidade de transplante onde são coletadas células tronco hematopoiéticas (que dão origens aos componentes sanguíneos) e, após a aplicação de altas doses de quimioterapia (que de tão forte “mata” a medula óssea – produtor de células sanguíneas), elas são reinjetadas e a medula volta a funcionar, produzindo todos os componentes sanguíneos imprescindíveis para uma vida normal.
O transplante autólogo só é indicado para determinados tipos de câncer, conforme os critérios estabelecidos por institutos de pesquisas e comitês de ética, nacionais e internacionais. O principal critério para a adoção dessa modalidade de tratamento é que todas as metástases e o tumor principal tenham sido eliminados, restando muito pouco, ou apenas câncer a nível celular. Só assim, o transplante pode ser indicado com segurança e com chances de sucesso, ou seja, diminuindo as chances de recidiva precoce do tumor - o que é característico do Rabdomiossarcoma.
O rabdomiossarcoma metastático não possui indicação de trasplante autólogo pois existem poucos estudos que estabeleçam essa modalidade de tratamento como sendo eficaz para evitar recidivas. Mas, o grande motivo de não existirem estudos, é que não existe uma quantidade suficiente de crianças que sobrevivam e que consigam chegar até essa fase do tratamento.
Se por um lado saber disso é extremamente assustador, afinal Ana Luiza é uma das crianças que possuem o pior tipo de rabdomiossarcoma existente, por outro lado nos faz ter a certeza e a convicção de que Deus foi extremamente misericordioso conosco e que tudo isso tem um objetivo. Sem dúvidas, passar por essa experiência tem um propósito muito especial, que nos forneceu a chance de mudarmos completamente nossas vidas, perspectivas e atitudes diante das pessoas e da vida.
Internamos para o que seria a última quimioterapia de Ana Luiza antes do suposto transplante autólogo, que seus médicos estavam totalmente inclinados a submetê-la.
Assim que chegamos ao hospital, recebemos a visita muito especial de uma pessoa que também estava enfrentando sua própria luta contra o câncer – a Fabiana.
Mulher linda, por dentro e por fora. Entrou em contato conosco através do blog e combinamos de nos encontrar, pois tanto ela quanto Ana Luiza estariam fazendo quimioterapia no mesmo período. Nós já tínhamos nos conhecido antes, quando ela veio visitar Ana Luiza no pós-cirúrgico, mas essa visita foi especial, pois pudemos conversar bastante e eu pude constatar como os problemas não escolhem momento, nem pessoas.
Fabiana é uma mulher jovem, linda e muito simpática, que teve um diagnóstico devastador de câncer na região abdominal alguns meses após seu casamento. Ela morava na Europa há 10 anos e vivia sua vida feliz, entre sua rotina de trabalho e as reuniões nas casas de amigos e familiares do marido. Recém casada e ainda vivendo um período que para muitos casais é mágico – o início do casamento - resolveu investigar as dores constantes que tinha no estômago e o emagrecimento repentino, quando finalmente descobriu o câncer – incomum para a idade dela e de difícil tratamento.
Desnorteada, resolveu voltar ao Brasil para contar pessoalmente a trágica notícia a sua mãe e familiares, buscando neles, o apoio que é fundamental para um tratamento tão rigoroso como o que ela enfrentaria. Optou por fazer o tratamento no Brasil (no A. C. Camargo, onde seria atendida pelo SUS, após uma longa fila de espera, mas evitando os gastos excessivos que teria caso fizesse o tratamento em Portugal, onde morava).
Infelizmente, seu marido não quis dividir com ela esse fardo e a abandonou sozinha, numa luta extremamente desleal, onde a presença de um companheiro parece ser fundamental. Foi inevitável não me emocionar com sua força. Apesar da triste história (e de tantas outras que vamos conhecendo pelo caminho), Fabiana seguia sua vida. Sem seu companheiro e ainda muito machucada pelo abandono inesperado, ela encontrou forças nos familiares, amigos e pessoas que conheceu ao longo de sua jornada.
Histórias como a de Fabiana e de inúmeras pessoas que conheci, nos mostram o que é problema de verdade. E a gente passa e enxergar as “dificuldades” do dia a dia com tanto desdém que ficamos até meio chatos.
Mas depois de devidamente alojados no quarto, a primeira pergunta de Ana Luiza foi: “Mãe, quero passear lá fora. Podemos ir ao quarto do Arthur? Ele ainda está no hospital, né?
Aquela pergunta me deu um frio na barriga. Sem saber explicar que o Arthur havia falecido, pedi pra que ela me aguardasse no corredor, enquanto eu chamava o Marcos.
Cheios de dedos, explicamos que o Arthur tinha falecido, que estava com papai do céu, sem sentir dor nenhuma. Com uma cara de pavor ela retrucou: “Ele morreu? O Arthur morreu?” Eu imaginava a tristeza dela, principalmente porque a pequena nunca teve contato tão próximo com alguém que tivesse falecido e o pior: de uma doença que ela também tinha, afinal o Arthur também era portador de um rabdomiossarcoma.
Ela não quis mais passear. Quis voltar para o quarto imediatamente e os olhos cheios de lágrimas me deixaram com um nó na garganta. Marcos foi mostrar as notícias sobre o Arthur na internet. “E os pais dele, mamãe? E a vovó dele? Eles devem estar muito tristes...” Disse Ana Luiza, ainda sem acreditar.
Conversamos muito, Marcos explicou que Arthur estava no céu e que estava bem, sem dores, sem doença nenhuma. E que seus pais, apesar da tristeza de terem perdido o lindo filho, entendiam que ele estava bem e feliz.
Após algumas horas vendo e lendo tudo sobre o Arthur na internet, finalmente Ana Luiza entendeu a situação e simplesmente voltou ao normal. Foi passear pelos corredores e brincar. Mais uma lição que a pequena me dava. Ela demonstrou que a vida continua e que se ele está bem, porque ficar se lamentando? Quando eu soube da morte do Arthur, fiquei extremamente abalada por semanas e ainda hoje me entristeço quando lembro das palavras de sua mãe e do amor de seus familiares. Mas Ana Luiza não. Ela é, definitivamente, melhor do que eu.
A quimioterapia começou bem. Seria o mesmo esquema do último ciclo: dois dias de drogas “menos agressivas” e poderíamos ir pra casa. Entretanto, a equipe de oncologistas pediátricos veio até o quarto e nos informou que eles haviam definido os próximos passos: Ana Luiza seria submetida ao transplante autólogo de medula óssea. Para tanto, eles aproveitariam esta internação para implantar o cateter central por onde coletariam as células tronco e as reinjetariam posteriormente.
Os médicos explicaram que, diferente do cateter que ela já utilizava para receber a quimioterapia, este cateter central era externo, com duas vias e um tanto desconfortável – mais tarde entendi que eles usaram de muito eufemismo com relação ao desconforto do cateter. Por ser externo e precisar de curativos diários, o risco de infeccionar era muito elevado, mas que ele era imprescindível para a realização dos procedimentos do transplante.
No dia em que deveria receber a alta hospitalar, ao invés de ir pra casa ela foi para o centro cirúrgico para colocar o tal cateter. Ela estava irredutível, não queria “de jeito nenhum” ir novamente para “aquele lugar horrível”... Mas foi paparicada pelas enfermeiras e rapidamente cedeu, apenas enfatizando que não ia querer “cheirinho” nenhum, se referindo a anestesia inalatória feita com máscara facial. Exatamente como da vez anterior, eu mesma a posicionei na mesa de cirurgia. Rapidamente ela dormiu e eu deixei a sala de cirurgia.
O fato é que nunca vou me acostumar com isso. Vê-la tão indefesa, desmaiada e sendo manipulada por tantas pessoas é sempre desesperador. A sensação é a mesma desde a primeira vez que ela foi para um centro cirúrgico. Acho que nunca vou deixar de temer e me preocupar!!
O procedimento foi muito rápido. Em 40 minutos tudo havia terminado e ela estava na recuperação anestésica. Voltar da anestesia geral é sempre ruim e pra piorar, tinha um cateter com 15cm de plástico pra fora do pescoço dela. Parecia uma grande seringa espetada em seu pescoço. A coisa mais feia e desconfortável que eu já tinha visto. Mas felizmente, os médicos aproveitaram que ela estava anestesiada e tiraram os pontos da cirurgia da cabeça, o que a poupou de mais um incômodo.
Assim que ela acordou da anestesia, achou “um absurdo” aquele cateter. Chorando, ela falava mal de todo mundo: “Esses médicos são terríveis, mãe! Eu não consigo nem mexer o pescoço! Que coisa mais horripilante! Chama essas enfermeiras aí e avisa que eu quero ir embora desse lugar!!”
Voltamos para o quarto no 5º andar e Ana Luiza virou um robô: não mexia, sob qualquer hipótese, o pescoço. Andava toda torta e dura, como se tivesse engolido um cabo de vassoura. Tudo incomodava, principalmente dormir, pois só conseguia ficar em uma única posição. Deitar e levantar da cama era um suplício pois ela sempre sentia muita dor.
No dia seguinte, a chefe da oncologia pediátrica nos chamou até o ambulatório de pediatria para conversar sobre os próximos passos do tratamento. Ela, que sempre demonstrou certa frieza e distanciamento, nos explicava com um olhar mais esperançoso que o transplante, apesar de ainda não ser protocolo em tratamento de rabdomiossarcoma, era uma estratégia que valia a pena tentar, em virtude da excelente resposta a quimioterapia que Ana Luiza tivera.
Ela enfatizou, entretanto, que a equipe estava tendo dificuldades em definir qual seria o condicionamento – drogas utilizadas na quimioterapia de altas doses - que seria aplicado em Ana Luiza. Eles haviam entrado em contato com diversos hospitais, tanto no Brasil, quanto no Exterior e cada um deles dava uma estratégia diferente. O caso de Ana Luiza era completamente incomum e portanto, quase não existiam estudos de caso, artigos ou relatos em outros hospitais de um caso clínico parecido. Sendo assim, o transplante poderia ser um tratamento definitivo ou não. Era um risco que eles estavam assumindo, em virtude da rápida e excelente resposta ao tratamento com quimioterápicos.
Por um lado aquilo me deixava convicta da cura da minha pequena, do milagre recebido e da benção que nunca seria suficientemente agradecida por mim e meus familiares. Mas por outro lado, tudo que a médica explicava me deixava com os nervos a flor da pele e pensando bobagem: “Então os médicos vão testar isso em Ana Luiza? Então eles vão tirar da cabeça deles o que fazer com ela? ” - Que sufoco. Meu coração estava doído demais.
Enfatizou também que quando a medula fosse reimplantada, poderia levar algum tempo até ela voltar a funcionar perfeitamente, o que aumentava os riscos de infecção e dias de internação.
“Mas isso vai curá-la?” Perguntei, de olhos arregalados. “Não sabemos, pois como expliquei anteriormente, não existem muitos estudos. Mas esperamos que isso diminua as chances de recidiva do tumor e aumente a sobrevida da sua filha”.
Sobrevida! Como tenho raiva dessa palavra. Eu sei que os médicos a utilizam de forma acadêmica e blá, blá, blá... mas eu não quero que minha filha tenha “sobrevida”. Quero que ela fique curada e pronto. Não quero que ela seja uma estatística, tratada como um número (um óbito a mais ou a menos)... Ouvir as palavras da médica naquelas circunstâncias, era o mesmo que estar comendo um bolo e alguém passar e jogar areia em cima. Ela tentava ser simpática, mas me dava calafrios.
Antes de sairmos do ambulatório, a médica disse que Ana Luiza necessitaria se submeter a uma biópsia da medula, para garantir que não existia mais nenhuma célula cancerígena no material que seria transplantado. Ela disse que tentou subir com a equipe para fazer a biópsia no dia em que ela colocou o cateter, mas que não conseguiram, pois ela já estava acordando da anestesia.
Eu não gostei da ideia de levá-la mais uma vez ao centro cirúrgico. Mas não tínhamos opção e eu entendia certos “desencontros” da equipe, pois eles também estavam tentando assimilar a rapidez das coisas e a melhora repentina de Ana Luiza. Agora era o momento de manter a firmeza e correr atrás das autorizações do plano de saúde, uma dor de cabeça sempre presente quando se trata dessa doença. Felizmente, nosso plano de saúde era excelente e até aquele momento tivemos pouquíssimos aborrecimentos.
Voltamos para o quarto e Ana Luiza estava bem, mas ainda andava igual um robô. Contei que no dia seguinte ela teria que ir, novamente, ao Centro Cirúrgico e ela, como esperado, detestou a ideia. Mas entendeu a importância e disse que a biópsia “nem doía tanto assim”.
No dia seguinte, lá fomos nós, mais uma vez, para o bendito Centro Cirúrgico. Dessa vez, a oncologista preferida de Ana Luiza faria a biópsia, o que a deixou mais tranquila. Assim que o anestesista chegou, Ana Luiza foi logo dizendo: “Nada de cheirinho, viu? Eu detesto esse 'cheirinho fedidinho' que vocês colocam...” Fui até a sala de cirurgia e ela não queria ficar deitada na mesa de jeito nenhum. Dizia que no ato de deitar-se, o local onde tinha sido implantado o cateter, doía demais. E ela ficou sentada.
O anestesista pediu que segurássemos ela com cuidado, pois ele injetaria a anestesia e ela imediatamente perderia os sentidos. Um enfermeiro e eu estávamos ao lado da Ana Luiza quando ela praticamente desmaiou nos meus braços sob efeito da anestesia. Arrumei-a na mesa e os médicos, como sempre, apenas disseram: “Agora você já pode ir, mãe!” E o frio na barriga era exatamente o mesmo das outras vezes em que a deixei na mesa de cirurgia.
O procedimento foi mais rápido que o anterior e Ana Luiza foi para a recuperação anestésica aguardar para voltar para o 5º andar. Ela estava muito desconfortável. No pescoço tinha um cateter horrível, super desconfortável. E agora tinha dois furos nas costas, que a incomodavam bastante para levantar e sentar. Ficou no hospital mais um dia, não dormia bem e sentia dificuldade para andar normalmente.
Além de tudo, ela começou a tomar, duas vezes ao dia, um medicamento via subcutânea (injeção na barriga), para estimular a produção de células de defesa (leucócitos) e células tronco (CD34+). O pavor de injeção (seja do tamanho que for) era pior do que 1000 cateteres enfiados no pescoço e o choro desesperador era inevitável. E o pior, ela tomaria esse medicamento por uns bons 15 dias até ter células tronco suficientes para serem coletadas.
Enfim, recebemos alta. Os médicos vieram conversar e explicaram que aquele era o último ciclo de quimioterapia de Ana Luiza e que se tudo corresse dentro do cronograma, provavelmente no final de maio, receberíamos alta do tratamento, com remissão completa da doença, devendo vir ao hospital uma vez ao mês para exames e consultas de rotina.
Ouvir aquilo era maravilhoso, vocês não conseguem imaginar a alegria do meu coração! Saber que teríamos apenas o transplante e as 30 sessões de radioterapia para concluir o tratamento, era a melhor notícia possível! Quantas crianças não estavam lá, há anos, enfrentando um tratamento? Quantas famílias esperavam anos até conseguir voltar para suas cidades de origem e tocar a vida? E quantas, após anos de luta, viam seus filhos cada vez mais enfraquecidos diante da doença?
Quando chegamos em SP, não existia qualquer previsão para voltarmos para Manaus. Os médicos mais otimistas nos diziam que ela ficaria em tratamento em SP por pelo menos 1 ano e meio. A literatura científica era muito menos otimista e muitas vezes catastrófica, reafirmando inúmeras vezes as poucas chances de uma criança com rabdomiossarcoma metastático sobreviver ao tratamento.
E em apenas 4 meses o câncer de Ana Luiza desapareceu. O que minha família e meus amigos vivenciávamos era algo espetacular. E eu, com meu coração de mãe, não me permitia comemorar por completo. A celebração ocorreria no dia em que eu voltasse com minha filha para nossa casa em Manaus. No dia em que ela entrasse em seu quartinho cheio de bonecas e pulasse na cama! No dia em que eu sentisse o cheiro da minha casa, dos meus lençóis, da minha cozinha... Neste dia sem dúvidas eu me permitiria comemorar, pois finalmente estaríamos tentando voltar a ter nossa vida normal de sempre!
Sem dúvidas receber aquela notícia me deixava feliz. Entretanto, eu estava consciente de que ainda existia um longo e árduo caminho a percorrer. E de fácil, ele não teria absolutamente nada. Marcos voltou mais uma vez para Manaus e ficamos apenas nós três: Ana Luiza, minha mãe e eu.
Ao sair do hospital teríamos uma jornada cansativa: Diariamente, viríamos ao hospital, duas vezes ao dia, para que Ana Luiza recebesse as aplicações de Granulokine e fizesse os hemogramas. Todos os dias saíamos de casa com o céu ainda escuro, pegávamos um táxi, aguardávamos no laboratório, para ela coletar amostras de sangue e, em seguida, aguardávamos quase 1h para ela receber a dose de Granulokine e voltávamos pra casa. No fim da tarde, pegávamos outro táxi, esperávamos mais 1h para a aplicação do medicamento e voltávamos pra casa.
Os 2 primeiros dias foram bem difíceis, mas rapidamente Ana Luiza passou a tirar de letra. Sempre inventava uma brincadeira diferente, conversava com todos os atendentes e enfermeiros, fazia novas amizades e pronto: Aquilo não era nada demais. E o cateter nem incomodava mais.
Mas eu... bem, eu estava moída! Além da rotina desgastante eu não conseguia dormir direito, pois ficava vigiando o sono dela, com medo que ela deitasse por cima do cateter (colocado do lado esquerdo do pescoço) e prejudicasse de alguma forma a coleta das células.
Os médicos estimaram que após o 12º dia de aplicação de Granulokine, os leucócitos estariam bem elevados e ela poderia fazer um exame específico para detectar as células tronco CD34+ na corrente sanguínea. Todavia, 4 dias antes do esperado, os leucócitos haviam subido sobremaneira (50 mil leucócitos!!!) e a enfermeira do setor de transplante de medula pediu que viéssemos ao hospital para fazer o exame específico para avaliar a presença de células CD34+.
Depois de indas e vindas dentro do hospital por causa da falta de autorização do plano de saúde, paguei particular o tal exame e finalmente Ana Luiza conseguiu fazê-lo. Sem este exame, era impossível detectar a presença das células tronco na corrente sanguínea, o que atrasaria a possível coleta. Eu ficava imaginando qual o motivo do plano de saúde autorizar um transplante tão caro e não autorizar um exame de 400 reais, que é imprescindível para o procedimento.
Enfim... Feito o exame, a enfermeira pediu que fôssemos até o Banco de Sangue de SP, localizado dentro do hospital, pois eles seriam os responsáveis pela coleta das células. Os dois médicos nos explicaram como era feito o procedimento e que seria indolor, mas o medo do desconhecido é algo incontrolável. Só em visualizar aquela máquina de aférese enorme e barulhenta que seria utilizada para separar as células, Ana Luiza entrou em pânico achando que fosse sentir dor. Foi dureza convencê-la, mas entre choros e olhos arregalados, ela finalmente entendeu.
Eu precisava resolver inúmeras coisas ao mesmo tempo e, infelizmente, minha mãe tinha amanhecido com uma crise de coluna que a impedia de andar. Quem sabe o que é crise de hérnia discal entenderá a “invalidez” temporária que a pessoa é acometida quando entra em crise.
Minha mãe não é meu braço direito. Ela é meus dois braços e minhas duas pernas. Sem ela aqui desde o início, acho que eu teria sucumbido a primeira avalanche de problemas. Mas naquele dia ela estava impossibilitada, momentaneamente, de me ajudar com Ana Luiza enquanto eu resolvia as burocracias.
Mais uma vez eu contei com Marcos, que de longe me ajudava a resolver as dificuldades com o plano de saúde. E enquanto aguardávamos o resultado dos exames, eu corria de um lado para o outro, tentando que o plano aprovasse os outros exames que ela precisaria, caso o primeiro evidenciasse a presença insuficiente de células. Os médicos esclareceram que é necessária uma quantidade “n” de células tronco e que, as vezes, isso pode demorar algumas semanas, tendo que submetê-la a mais de uma coleta e mais de um exame até a quantidade de células ser suficiente para o transplante.
Eu não achava justo ter que pagar 400 reais todos os dias para fazer um exame que estava diretamente relacionado ao transplante, procedimento que já havia sido autorizado pelo plano de saúde. Aquilo era irracional e eu lutaria até o fim para que eles entendessem a bizarrice da situação.
Incrivelmente, Ana Luiza não precisou mais de nenhum exame, nem de continuar recebendo doses cavalares de Granulokine: O exame apontou que ela tinha 8 vezes mais células que o necessário para a coleta. Os médicos disseram que sua medula óssea, apesar da agressividade da quimioterapia que ela tinha se submetido, estava em excelentes condições e rapidamente respondeu ao estímulo do medicamento, produzindo células tronco de qualidade e em quantidade acima do esperado.
Fiquei extremamente feliz e Ana Luiza iniciou a coleta na mesma data do exame, dia 09/02, às 13h. A coleta das células consistia, basicamente, em: acoplar a máquina de aférese nas duas vias do cateter. Uma das vias, aspirava o sangue da corrente sanguínea e levava até a máquina, que fazia a separação dos componentes sanguíneos, ficando apenas com as células CD34. Estas células ficavam armazenadas em algo parecido com uma bolsa de sangue. Enquanto separava as células, a máquina devolvia, simultaneamente, o restante do sangue pela outra via do cateter.
O processo levava aproximadamente 5 horas para ser concluído e apesar do medo e do choro iniciais, após 1h de coleta, Ana Luiza caiu em sono profundo, acordando somente no término do procedimento.
Terminada a coleta, a bolsa contendo as células tronco era novamente submetida a análise laboratorial (desta vez, depois dos nossos apelos, o plano de saúde autorizou) e em seguida era congelada e ficava armazenada no Banco de Sangue, aguardando o momento de ser reinjetada em Ana Luiza, através do mesmo cateter utilizado na coleta das células.
Em virtude da rapidez com que o procedimento foi feito, o transplante autólogo foi agendado exatamente após 21 dias do último ciclo de quimioterapia, ou seja, dentro do prazo ideal para que ela se mantivesse sempre “protegida” pela quimioterapia, antes de iniciar um novo (e último) ciclo.
E quando eu respirei aliviada, pensando que teríamos alguns dias de “folga” antes da internação, os oncologistas nos “presentearam” com uma lista enorme de exames que Ana Luiza precisaria se submeter antes do transplante. E reiniciava outra maratona.
Consegui agendar todos os exames: Cintilografia óssea, tomografia, ressonância magnética, eletrocardiograma, ecocardiograma, exames laboratoriais (47 exames – foram coletados exatamente 9 tubos de amostras de sangue), consulta com estomatologista, raios X panorâmico dos dentes e consulta com dermatologista e dentista. Todos eles para a mesma semana.
Minha mãe (meus braços e pernas) precisou voltar para Boa Vista e “passou o bastão” para a outra avó: Minha sogra Eliane. Um dia antes de minha mãe voltar para Boa Vista, meus sogros chegaram e participaram da rotina exaustiva de exames.
Segundo os médicos, Ana Luiza precisava estar “100%” antes do transplante. Uma cárie nos dentes poderia ser o suficiente para ela ter uma infecção mais difícil de tratar, ou facilitar o ambiente para a proliferação da mucosite. Ainda tinha a preocupação com a unha do polegar da mão direita, que parecia ter um fungo. Os odontólogos parabenizaram a pequena: seus dentes estavam em perfeitas condições. Ela fez uma limpeza, mas não precisou de mais nada. E durante a consulta com a dermatologista, descobrimos que não se tratava de um fungo na unha e sim de um granuloma piogênico, uma espécie de tumor benigno, que ocorria geralmente em virtude de um trauma ou infecção na unha (algo que até agora não compreendi como aconteceu!!)
A dermatologista nos deu duas opções de tratamento: aplicar anestesia local e retirar parte da unha, ou cauterizar a lesão com ácido e usar iodo e rifamicina duas vezes ao dia.
Conversei com Ana Luiza e era difícil pedir que ela escolhesse entre dois procedimentos traumáticos e doloridos. A dermatologista, optou pelo menos traumático, mas a gritaria ao cauterizar a lesão foi absurda! Mas era algo necessário. Ver minha pequena berrando de dor, maltratava demais meu coração. Eu não podia fraquejar enquanto ela superava mais um desafio. Me restava manter a firmeza, dando toda força do mundo pra ela.
Os exames ocorreram todos dentro do planejado. Apesar da exaustão do corpo (e da mente) e de alguns atrasos que me faziam correr feito louca de um lado para o outro do hospital, tivemos êxito total na realização dos exames. Mais uma vez, Deus mostrava que estava sempre ao nosso lado.
Além da maratona desgastante no hospital, a rotina em casa também era bastante cansativa: Além da dificuldade para tomar banho por causa do cateter, ainda era necessário cuidar da unha duas vezes ao dia e refazer o curativo do cateter 1 vez ao dia. Além disso, tinha as diversas vitaminas e alimentos especiais, para tentar fortalecer sua imunidade antes do transplante.
Enfim, depois da correria, finalmente tivemos um final de semana de descanso. Marcos, que estava em Manaus, veio ficar conosco e a presença dele sempre nos fortalecia muito. Estarmos juntos na véspera desse importante passo no tratamento de Ana Luiza é muito importante para todos nós!